Prática oncológica no Brasil: 10 recomendações de conduta

Roxana Tabakman

Notificação

30 de agosto de 2022

Muitas práticas médicas comuns não oferecem benefícios aos pacientes, têm um impacto negativo no orçamento da saúde e podem sobrecarregar os médicos. Partindo desta premissa, uma equipe liderada pelo radio-oncologista Dr. Fabio Ynoe de Moraes, professor associado do Departamento de Oncologia da Queen’s University, no Canadá, se baseou na experiência em exercícios de oncologia da Choosing Wisely (CW) em outras regiões para analisar a prática no Brasil, e publicou uma carta ao editor na revista Nature Medicine. [1]

A CW é uma campanha multinacional para engajar e ajudar médicos e pacientes em diálogos sobre excessos diagnósticos e terapêuticos, colaborando para escolhas sábias em saúde.

Os pesquisadores identificaram uma lista de condutas médicas consideradas desnecessárias, de baixo valor ou prejudiciais aos pacientes muito comuns no Brasil, e então elaboraram recomendações para combater essas práticas e incentivar a oncologia baseada em valor e evidências em toda a América Latina.

“É notório que a medicina está cada dia mais complexa, e com essa complexidade se oferecem tratamentos que não trazem benefícios e podem até prejudicar o paciente. E [esses tratamentos] têm um custo muito alto, em especial para os sistemas de saúde públicos, como o [Sistema Único de Saúde – SUS] do Brasil”, disse o Dr. Fabio, que mora no Canadá e concedeu uma entrevista via Zoom ao Medscape em português.

Dr. Fabio Ynoe de Moraes

Ele explicou que, na Queen’s University, há uma equipe com bastante expertise com o Choosing Wisely. “Decidimos que a América Latina precisava deste tipo de iniciativa. Escolhemos o Brasil porque, obviamente, eu tenho raízes e continuo trabalhando lá”, disse o médico, que é membro do Latin American Cooperative Oncology Group (LACOG). “Mas também porque [o Brasil] pode servir de modelo para outros países”, complementou.

Foi montada uma força-tarefa de oncologia em 2021, com médicos brasileiros de cada especialidade primária de oncologia e cuidados paliativos. O grupo incluiu executivos das três principais associações de oncologistas do país: Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica (SBOC), Sociedade Brasileira de Cirurgia Oncológica (SBCO) e Sociedade Brasileira de Radioterapia (SBRT). A iniciativa contou com profissionais afiliados às seguintes instituições e serviços de saúde brasileiros: Hospital Sírio-Libanês, Hospital das Clínicas da FMUSP, Rede D’Or São Luiz, Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (ICESP), Dasa (SP), Hospital de Base do Distrito Federal, Hospital Moinhos de Vento e Instituto da Mama do Rio Grande do Sul (IMAMA), Clínica AMO e Oncoclinicas Bahia. O grupo também contou com pacientes e representantes de organizações de defesa dos pacientes, como o Instituto Oncoguia. O Ministério da Saúde não foi convidado a participar. “Eles são players muito interessados, podem ter um viés”, justificou o Dr. Fabio.

“O trabalho está muito interessante e relevante para o Brasil, e quem sabe pode servir de pontapé inicial para um trabalho oficial com sociedades médicas brasileiras ligadas à oncologia”, respondeu o Dr. Guilherme Brauner Barcellos, coordenador nacional da Choosing Wisely Brasil. “É pelo que torcemos como Choosing Wisely Brasil, uma vez que nossas listas oficiais são em parceria com instituições.”

A força-tarefa fez uma revisão da literatura para entender o que, comprovadamente, não pode ser usado ou diminui a qualidade do atendimento, e definiu uma centena de recomendações iniciais. Assim como os critérios que determinam condutas de baixo valor no Brasil não são os mesmos nos Estados Unidos ou na Índia, sugestões que relevantes para São Paulo nem sempre o são para o Norte ou Nordeste. Após várias rodadas de votações, a equipe selecionou as 10 recomendações mais relevantes para o Brasil.

Na versão final, foram incluídas recomendações para tratamento, cuidado paliativo, rastreamento, prevenção e diagnóstico. Sete das 10 recomendações selecionadas são adaptações de listas internacionais da CW. O projeto brasileiro adicionou três práticas de baixo valor: negligenciar a importância do estilo de vida; uso excessivo do rastreamento para doenças crônicas comuns; e não consultar uma equipe multidisciplinar antes de começar o tratamento de pacientes com câncer de pulmão não-pequenas células inoperável em estágio inicial, ou com múltiplas comorbidades.

“Todos os membros votaram”, afirmou o Dr. Fabio. E o peso do voto dos participantes foi igual para todos: “do paciente ao chefe do maior serviço de oncologia do Brasil”, concluiu.

O Medscape solicitou a opinião do cirurgião oncológico Dr. Héber Salvador, presidente da SBCO e titular do A. C. Camargo Cancer Center. Ele afirmou que o artigo é muito relevante, destacando que foi publicado em um periódico de altíssimo impacto.

Dr. Héber Salvador

“Traz para o centro da discussão uma questão fundamental na assistência aos pacientes com câncer, como decidir o que beneficia aquele indivíduo em especial e o todo, a coletividade”, disse o Dr. Héber, que não participou do projeto. “Vivemos esses dilemas no dia a dia, e quando olhamos para a questão da saúde pública, isso faz ainda mais sentido.”

O Dr. Paulo Hoff, presidente da SBOC, também se manifestou: “É uma publicação importante, que deve ser avaliada e lida pelos colegas das mais diversas especialidades que tratam pacientes com câncer. [O texto] aponta um caminho para incorporarmos as novas tecnologias, os novos avanços, e ao mesmo tempo controlarmos o custo dos tratamentos oncológicos na nossa população.”

Dr. Paulo Hoff

O Dr. Paulo ressaltou que o câncer é a segunda maior causa de mortes no Brasil. Ao mesmo tempo em que avanços importantes na tecnologia permitem o diagnóstico e diversos tipos de tratamento, a incidência de câncer apresenta uma curva ascendente.

Isso tem gerado preocupações com os custos associados ao tratamento oncológico no mundo inteiro. E no Brasil não é diferente”, disse o presidente da SBOC. Ele comentou sobre o esforço mundial para que os tratamentos sejam custo-efetivos e ofereçam verdadeiros benefícios aos pacientes. “Esse artigo que foi publicado em uma revista de grande impacto mundial aponta 10 recomendações que foram compiladas por um grupo de especialistas brasileiros, e ajudam a fazer um controle, uma moderação nos custos relacionados ao tratamento dos pacientes com câncer, sem afetar o desfecho, sem reduzir a probabilidade de sucesso.”

As 10 principais recomendações
Prevenção

Rastreamento

  1. Não deixe de abordar fatores de estilo de vida, como cessação do tabagismo e exercícios durante toda a jornada do paciente com câncer.

  2. Não realize exames diagnósticos de triagem como ultrassonografia, tomografia computadorizada/tomografia de emissão de pósitrons ou teste de marcador de tumor sérico em pacientes assintomáticos ou com risco baixo a moderado.

  3. Não peça exames de rastreamento ou testes de rotina para doenças crônicas, como hormônio estimulante da tireoide, T3 e T4 para tireoide, hemoglobina glicada (HbA1C) para diabetes ou exame para anemia, simplesmente porque uma coleta de sangue será feita.

Diagnóstico

  1. Não use uma terapia direcionada, destinada a ser usada contra uma mutação genética específica, a menos que as células tumorais do paciente tenham um biomarcador específico que preveja resposta eficaz à terapia-alvo.

Tratamento

  1. Não realize cirurgias como tratamento inicial antes de considerar um tratamento pré-cirúrgico (neoadjuvante) sistêmico e/ou radiação para tipos de câncer e estádios em que sejam eficazes na melhoria do controle local do câncer, qualidade de vida ou sobrevida.

  2. Não utilize rotineiramente esquemas de fracionamento estendido (> 5 frações) para paliação de metástases ósseas sem complicações.

  3. Não trate pacientes com câncer de pulmão não-pequenas células em estágio inicial inoperável (ou com múltiplas comorbidades) sem antes conversar sobre a radioterapia corporal estereotáxica com o paciente.

  4. Não utilize terapia direcionada em pacientes com tumores sólidos com as seguintes características: baixo desempenho (3 ou 4), nenhum benefício de intervenções baseadas em evidências anteriores, inelegíveis para ensaios clínicos e sem evidências fortes de que sustentará o valor clínico do tratamento antineoplásico; foque no alívio dos sintomas e nos cuidados paliativos.

  5. Não trate câncer de próstata de baixo risco clinicamente localizado quando o escore de Gleason for <7, PSA <10,0 ml-1 ou a etapa do tumor ≤T2 sem antes discutir a vigilância ativa como parte do processo de decisão compartilhada.

  6. Não use terapia loco-regional extensiva na maioria dos casos de câncer com doença metastática e sintomas mínimos atribuíveis ao tumor primário.

Pensar no valor e evitar excessos

Valor é o que relaciona a qualidade dos desfechos clínicos relevantes para os pacientes com o custo para chegar a esses desfechos. O valor, explicou o Dr. Fabio, depende da perspectiva. Tem o valor na perspectiva do paciente, na perspectiva do médico, na perspectiva do seguro de saúde e na perspectiva do hospital. “Nós queremos que [o tratamento] traga valor para o paciente e para a sociedade na qual ele está inserido.”

Quando indagado por que a falta de adesão a atitudes baseadas em um conhecimento científico que já está bem-estabelecido é tão comum entre alguns profissionais da saúde, o radio-oncologista refere que a produção do conhecimento pode demorar mais de 10 anos para encontrar o seu lugar na prática clínica.

A observação do Dr. Héber vai no mesmo sentido. Ao comentar sobre a recomendação de que a cirurgia não deve ser realizada como primeira linha de tratamento quando houver evidências de que uma terapia adjuvante pode trazer benefícios ao paciente, ele disse: “Iniciar com outros tratamentos pode tornar a cirurgia mais efetiva. Selecionar o paciente que vai se beneficiar mais com a cirurgia torna o procedimento menos agressivo e mais completo do ponto de vista oncológico.”

“Mas muitas vezes o cirurgião, especialmente quando não tem formação oncológica, entende que a cirurgia deve ser o tratamento de primeira linha para tumores sólidos, e isso não é mais verdade hoje em dia.” Ele resume: “A cirurgia é uma peça fundamental do tratamento, parte que está associada à chance de cura. Porém, hoje ela tem que entrar como uma peça de uma engrenagem.”

Evitar os excessos foi outro ponto considerado importante pelos autores, e depende de muitos fatores, entre eles a educação dos médicos e dos pacientes.

Na opinião do Dr. Héber, este é um ponto que precisa ser divulgado para a população. Segundo o médico, solicitar exames de rastreamento para grupos de pacientes que não apresentam alto risco de ter a doença, por exemplo, gera mais estresse e gastos do que ajuda alguém. Esse conhecimento precisa ser compartilhado entre os profissionais e a população para que as pessoas se sintam seguras de que esse tipo de conduta é o mais adequado para a saúde de todos, afirmou ele.

O Dr. Héber também mencionou o risco de o paciente se sentir menos cuidado. E que o profissional precisa compreender que ao não fazer algo, ou adotar uma conduta expectante, ele pode estar contribuindo para a saúde do sistema como um todo – e correndo um baixo risco de prejudicar o paciente individualmente. O médico ressaltou a falsa sensação de benefícios gerada pelo excesso de exames e procedimentos. “Não se discute tanto os riscos não só psicológicos, mas físicos de esse processo de investigação com solicitação excessiva de exames que eventualmente resultam em biópsias e procedimentos invasivos.”

“Há uma cobrança muito forte por parte do paciente e das respectivas famílias. Eles querem que algo seja feito; um exame, uma intervenção. De forma geral, é muito mais fácil adicionar do que não oferecer nada. Mas o futuro da medicina deve ser baseado em evidências, em valor, multidisciplinaridade. E o trabalho deve ser centrado no paciente”, concluiu o Dr. Fabio.

Espaço de discussão

As recomendações não têm peso de diretriz. O objetivo é gerar debates, estimulando o diálogo entre os envolvidos no cuidado do câncer, e o próximo passo do projeto é validar essas recomendações com o maior número de oncologistas, pacientes, ONGs e o Ministério da Saúde. Os autores também pretendem mapear a infraestrutura disponível e identificar lacunas e barreiras ao atendimento de alto valor aos brasileiros com câncer, assim como expandir o desenvolvimento da oncologia baseada em evidências e o cuidado baseado em valor na América Latina.

Os Drs. Fabio Ynoe de Moraes, Paulo Hoff, Héber Salvador e Guilherme Brauner Barcellos informaram não ter conflitos de interesses relevantes.

Roxana Tabakman é bióloga, jornalista freelancer e escritora residente em São Paulo, Brasil. Autora dos livros A Saúde na Mídia, Medicina para Jornalistas, Jornalismo para Médicos (em português) e Biovigilados (em espanhol). A acompanhe no Twitter: @roxanatabakman.

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