O que alimenta a violência sexual na medicina?

Mônica Tarantino

22 de julho de 2022

Nos primeiros dias de julho, o país ficou estarrecido com a denúncia do abuso sexual cometido por um médico anestesista contra uma mulher aos seus cuidados durante o parto por cesariana. O episódio foi gravado em vídeo por enfermeiras e técnicas de enfermagem que desconfiaram da quantidade exagerada de sedativos aplicada nas grávidas pelo anestesista e decidiram filmá-lo durante o atendimento. Para isso, na última hora, trocaram a sala de parto e esconderam um celular em um armário do centro cirúrgico.

As cenas registradas são horripilantes e levaram à prisão em flagrante do agressor, Giovanni Quintella Bezerra, um médico de 32 anos, branco e bem-sucedido, que foi acusado de estupro. Mais vítimas que podem ter sido abusadas pelo médico procuraram as autoridades e a polícia investiga cerca de 40 cirurgias nas quais o anestesista atuou. Ainda em julho, o ginecologista Ricardo Teles Martins também foi preso após ser acusado de assediar e abusar sexualmente de várias mulheres em Hidrolândia, no Ceará.

A reportagem do Medscape ouviu quatro especialistas para comentar os aspectos suscitados por esses casos recentes e também os elementos que cooperam para a ocorrência de crimes dessa natureza. Foram entrevistados o Dr. Claudio Cohen, psiquiatra e bioeticista, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP); Daniela Pedroso, psicóloga com 25 anos de experiência com vítimas de violência sexual; Dr. Jefferson Drezzett, professor da disciplina de saúde sexual e reprodutiva e genética populacional da Universidade Federal do ABC (UFABC) e do departamento de Saúde, Ciclos de Vida e Sociedade da Faculdade de Saúde Pública da USP; e a Dra. Maria Alice Scardoelli, vice-presidente do Conselho Regional de Medicina de São Paulo.

Embora subnotificados e pouco acessíveis, os números da violência sexual em instituições de saúde impressionam. Em 2019, um levantamento feito pelos jornalistas do The Intercept revelou 1.734 registros de agressões desse tipo em 9 estados do país no período de seis anos (2014-2019). As informações foram obtidas junto às secretarias de segurança pública dos estados por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI), que regulamenta o direito de acesso às informações públicas.

A dificuldade de reunir as denúncias feitas aos conselhos regionais de medicina, às delegacias de polícia ou ao Ministério Público de cada estado também atrapalha o dimensionamento desse tipo de violência sexual. Dependendo de onde é feita a notificação, a investigação segue um caminho diferente, e somente às vezes as instituições se comunicam. Dados informados pelo Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp) mostram que em 2019 a entidade recebeu 78 denúncias. Em 2020, o número aumentou para 84 e se manteve em 83 em 2021, quando representou o sétimo tema mais frequente na lista de sindicâncias abertas naquele ano. Nos primeiros seis meses de 2022, houve 36 queixas. O número também engloba sindicâncias abertas a partir de reportagens publicadas pela imprensa, desde que tenham informações suficientes para dar início a uma apuração. Entretanto, não há informações sobre quantas denúncias viraram processos ético-profissionais e quantos foram a julgamento.

“Cada denúncia recebida é investigada por uma comissão técnica composta por profissionais de diversas especialidades. Realmente precisa haver uma apuração rigorosa durante a sindicância. Não podemos ser injustos: se lá na frente o fato não se prova verdadeiro, a carreira de alguém pode ter sido destruída”, explica a psiquiatra Dra. Maria Alice Scardoelli, vice-presidente do Cremesp.

Depois que a denúncia foi investigada e aceita pelo Cremesp, não há limite de tempo para um processo terminar, o que pode levar cinco anos ou até mais. Desde março deste ano, porém, foi estabelecido um limite para o período de sindicância, que precede a instauração do processo.

“Agora, temos 90 dias para fazer a apuração na fase de sindicância que são prorrogáveis por mais três meses a partir do momento que a denúncia entra no conselho. Se for aceita, aí é aberto um processo”, disse ao Medscape a Dra. Maria Alice. 

Há também os casos que não são denunciados pelas vítimas e as situações informadas muitos anos depois, como ocorreu em 2019 com a atriz que protagonizou a campanha #ondedoi, feita para dar visibilidade ao problema. Abusada sexualmente por um médico aos 16 anos, ela conseguiu denunciar a violência sofrida mais de uma década depois.

Quanto à campanha, rapidamente a ação teve mais de 4.000 postagens na internet, a maioria relatos sobre as atrocidades cometidas por médicos em consultas ou atendimento hospitalar. Muitas histórias podem ser lidas no Twitter por meio da hashtag #ondedoi .

O grande impacto das notícias sobre médicos abusadores sugere que as agressões sexuais feitas por profissionais de saúde parecem surpreender mais. “Um dos aspectos mais perturbadores é essa violência ser cometida contra mulheres numa posição vulnerável em relação ao profissional de saúde, principalmente quando estão anestesiadas, adoecidas ou o profissional utiliza um elemento de fraude nos seus procedimentos para criar qualquer tipo de abuso em relação a essa mulher”, diz o ginecologista e obstetra Dr. Jefferson Drezzett.

Na visão do psiquiatra e bioeticista Dr. Cláudio Cohen, a violência sexual praticada por médicos e também por advogados, religiosos, juízes, políticos e policiais, entre outros, se vale do uso da força institucional e da vulnerabilidade do outro na relação. Ele explica: “Há uma equivalência entre a figura do médico, do advogado, do policial, do religioso, pai, chefe ou marido que cometem abusos sexuais. Em um plano emocional, todos estão se valendo da sua figura investida de poder pela sociedade e da relação assimétrica com o outro.” De fato, quem bate à porta de um médico em busca de diagnóstico ou tratamento ou de um advogado à procura de ajuda já chega em uma situação de fragilidade. “O abusador considera o outro como um objeto, e não como um sujeito de direito”, assinala o Dr. Cláudio. Pessoas com perfil psicológico e comportamental de agressor sexual encontram nessas atividades profissionais “poderosas” e nas circunstâncias que elas proporcionam um meio para realizar o seu desejo. A medicina, porém, teria ainda um diferencial, que é um consentimento para tocar o corpo das pessoas.

Mais um aspecto comentado pelo psiquiatra e bioeticista é a idade do anestesista preso recentemente. Autor de vários títulos, em seu livro Bioética e Sexualidade Nas Relações Profissionais (Editora da Associação Paulista de Medicina, 1999) o Dr. Cláudio faz uma análise do tratamento dado pelo Cremesp a 150 processos de abuso sexual.

“Quando fiz o levantamento dos casos, pude ver que a maioria dos abusadores não eram os médicos recém-formados, com idade entre 22 ou 23 anos, época da vida em que se está com sexualidade mais à flor da pele, e tampouco os mais velhos. Eram, na prática, aqueles já tinham uma experiência profissional de vários anos, como esse anestesista de 32 anos, que em dado momento rompeu com todas as proibições e com a sua função social de cuidar e mitigar o sofrimento. Nada foi suficiente para impedi-lo de realizar o seu desejo, nem a presença de outros médicos e enfermeiras na sala de cirurgia.” Em tempo: no estudo feito pelo Dr. Cláudio, a maioria dos 150 casos avaliados foi arquivada por falta de comprovação.  

No entendimento da psicóloga Daniela Pedroso, que atendeu mais de 12 mil vítimas de assédio sexual, o questionamento e a intimidação sentidos na relação com a figura masculina do médico, o detentor do suposto saber sobre o seu corpo, deixa as mulheres vulneráveis e mais sujeitas às violências, especialmente em regiões de periferia. Para a especialista, “estamos falando, mais uma vez, de uma cultura do estupro, algo que muita gente não sabe o que significa, mas que, em linhas gerais, trata da objetificação dos corpos das mulheres, e de homens que foram criados imaginando que têm direito de tocar meninas e mulheres e ficarem impunes.”

Outro componente que colabora para a manutenção dessa situação é a ausência de ações de educação sexual e prevenção de abuso sexual. “Estamos muito atrasados. Vivemos em um país onde existe o entendimento absolutamente equivocado de que falar em educação sexual é ensinar crianças a fazer sexo, e não a se proteger. Ensina-se às meninas que devem se proteger para não serem estupradas, mas não se ensina aos meninos a não estuprarem.”

Mais um ângulo destacado pela psicóloga Daniela Pedroso é o fato de os agressores sexuais procurarem locais menos visados para agir, onde acreditam que as regras são flexibilizadas e não serão flagrados. É o que pode ter ocorrido no caso do anestesista Giovanni Bezerra. Em entrevista à imprensa, a coordenadora da área de Saúde na Defensoria Pública do Rio de Janeiro, Thaísa Guerreiro, disse recentemente que houve falhas nos protocolos adotados pelo Hospital da Mulher, em São João do Meriti, um dos locais onde o anestesista agressor atuava. Ela disse ainda que notou entre os profissionais uma naturalização da violação do direito a um acompanhante durante todo o parto, previsto em legislação federal. Segundo a defensora, a chefia do setor de anestesia do hospital e a coordenação estadual da saúde não estranharam ou questionaram essa atitude. De acordo com depoimentos, o anestesista pedia aos maridos das pacientes para que se retirassem da sala no meio do procedimento.

Vale esclarecer, como menciona o Dr. Jefferson, que embora tenham pontos em comum, a violência obstétrica e o abuso sexual não têm a mesma origem ou descrição. “Chamamos de violência obstétrica dois conjuntos de situações: um envolve qualquer tipo de tratamento desrespeitoso, na forma de comentários ou negligência ao longo da gestação, no parto e no puerpério; o outro conjunto se refere a atitude dos profissionais em impor procedimentos inadequados e já abandonados pela medicina no momento do nascimento, como colocar a mulher em jejum, fazer a raspagem dos pelos pubianos, induzir ou conduzir parto com ocitocina e a episiotomia [de rotina], entre outros.”   

E como as instituições do setor estão lidando com o problema? “Muito mal. A violência sexual praticada por médicos e outros profissionais da saúde é assunto tabu sobre o qual as pessoas ainda receiam falar”, considera o bioeticista Dr. Cláudio. “Lamentavelmente, é uma ocorrência frequente. Talvez não falássemos muito dela antes porque não tínhamos a perspectiva de que profissionais da saúde, como médicos e enfermeiros, estão sujeitos a cometer atos de violência durante o exercício profissional”, observa o Dr. Jefferson.

Discute-se também o papel das faculdades nesse debate. “Lógico que as faculdades devem discutir a violência contra a mulher, principalmente no âmbito da saúde. Isso já é feito há tempos, não está em todos os currículos de todas as faculdades de medicina ou enfermagem, serviço social ou psicologia”, diz o Dr. Jefferson. Nas aulas de bioética dadas ao terceiro e quarto ano da graduação em medicina da FMUSP, por exemplo, o Dr. Cláudio já pediu aos estudantes para refletir sobre o que significa o fato de serem prontamente atendidos ao pedir a um paciente desconhecido para se despir antes de um exame. “Isso não é respeito ao médico, mas ao poder da instituição”, diz o professor. Em uma outra frente de enfrentamento, coletivos feministas foram criados por grupos de alunas em diversas escolas para colocar em pauta a violência sexual, que é um problema também no campus universitário, e outros temas da violência de gênero.

Se há a introdução dos alunos em debates da contemporaneidade, ao mesmo tempo o Dr. Jefferson acha pouco provável que as ações na graduação consigam inibir a conduta de estudantes com comportamento propenso à violência sexual. “Nós estamos falando de uma educação sexista em que a discussão sobre a violência de gênero deveria começar muito antes, na família e dentro da escola.” Ele também não acredita que a repercussão das denúncias na mídia tenha impacto sobre os molestadores. “Se assim fosse, o caso Roger Abdelmassih teria resolvido o problema.”

Por outra perspectiva, a divulgação dessas histórias pode ajudar a aflorar questões muito positivas, segundo o próprio médico. Voltando ao caso do anestesista, o episódio deixou claro que o descumprimento de leis e direitos ocorreu para que o crime sexual pudesse ser praticado, já que as enfermeiras suspeitaram de ações de violência obstétrica, como a sedação que impediu o contato com o recém-nascido e a amamentação nas primeiras horas, duas recomendações internacionais.

“Profissionais de saúde que atuam corretamente, seguindo as boas práticas de relacionamento e conduta no seu dia a dia, em todos os momentos do atendimento no serviço público ou privado, se diferenciam de situações como essa e não praticam uma medicina temerária”, diz o Dr. Jefferson.

O lado ruim de tudo isso, conforme o médico, é que a desconfiança de parte dos pacientes pode se disseminar. “Tenho colegas anestesistas com uma trajetória ética e profissional impecável muito entristecidos com esse olhar duvidoso. É preciso deixar claro que se trata de uma exceção, e não da regra”. Igualmente, é preciso desmistificar que o abuso está sempre associado, de alguma maneira, ao atendimento obstétrico ou ginecológico.  

“Isso não é verdade e pode ocorrer em consultas de qualquer especialidade desde que o médico ou a médica tenha intenção de cometer o ato criminoso”, diz o Dr. Jefferson. Ele ressalva ainda que não se vê uma prevalência alta de profissionais da saúde entre os molestadores sexuais, embora os casos sejam numerosos e isso não diminua a gravidade dos fatos. “Claro que estamos falando sempre de exceções, mas na minha prática no atendimento às vítimas eu tive mais contato com casos de policiais cometendo atos de violência sexual contra a mulher do que médicos”, exemplificou.

Por fim, vale dizer que as enfermeiras e técnicas de enfermagem do hospital de São João do Meriti que denunciaram o abusador atuaram de modo muito assertivo. Se elas não tivessem fundamentado sua denúncia com provas, possivelmente o médico não teria sido preso em flagrante e o caso tomaria outros rumos, inclusive com chance de pressões e represálias. Frente a essas possibilidades, o grupo agiu alinhado com os mais elevados ideais da profissão. Sem dúvida, um exemplo destemido e inspirador.

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